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PÂNTANO por Aruan Mattos e Nian Pissolati |
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A palavra, o
homem, o mundo.
Em suma, o mundo dos homens. Em suma, as pessoas do mundo. A língua, máquina-cascata de fazer palavra, derrama o quanto pode suas peças, construindo jogos em que a ordem dos fatores altera o resultado. A língua, ser enorme que engole o mundo na medida mesma em que o fabrica pela boca das pessoas. O homem, que inventa o mundo. O mundo dos seres que fazem palavras é o mundo dos seres feitos pelas palavras. O jogo de espelhos em que o reflexo da criatura é o criador é entrada e saída deste mundo. De onde, vez ou outra, um desavisado aventura-se à (nem tão) tola questão, nomear ou viver? A clássica lenda do golem é conhecida e aparece diversas vezes na história de maneira mais ou menos parecida: o homem cria um ser dotado de vida e em algum momento a criatura foge ao seu controle. A oscilação criador-criatura gera lá seus monstros incontroláveis a começar por ele mesmo, o homem, ou pela sua criatura estimada, a linguagem. No instante em que a palavra se faz, a angústia por alguma estrutura é o movimento da fé. Já tiveram aqueles que viram as palavras como seres vivos parasitários que utilizam o homem como hospedeiro. Em momentos mais temerosos, Burroughs chegou a afirmar que a humanidade poderia entrar em extinção pela palavra. Mecanismos, freqüências e buracos criados pela solidez da concatenação de sons, que formam sílabas, que se juntam em palavras e criam o que quer que seja, até mesmo o abismo. A palavra, ser, ainda que invisível ao microscópio. Jorge Luis Borges acreditava mais nas palavras que nas coisas. É seu o iluminado verso: “y todo el Nilo en la palabra Nilo”[1]. Da mesma forma que a concatenação de quatro letras gera a imensidão do rio, com vinte e seis letras cria-se o mundo. A palavra como criação exponencial do mundo. Ou justamente o inverso: a língua como artifício pavoroso pelo qual o homem reduz o mundo a pó. Em determinado momento de A Biblioteca de Babel, Borges sugere que mesmo após a extinção da humanidade, a biblioteca viverá. Mas voltando aos versos do início: A palavra, o homem, o mundo. Em suma, o mundo dos homens. Em suma, as pessoas do mundo. Autor: traslador.org. O poema foi criado em um processo de tradução randômica do site www.traslador.org (que por sua vez se utiliza do Googletranslate como plataforma). A primeira frase veio de um cérebro (foi escrita por uma pessoa) ‘A palavra, o homem, o mundo.’ Em seguida foi traduzida para o espanhol, somali, indonésio, chinês simplificado, lituânio, sueco, bengali e voltou por fim ao português. Naturalmente, pela inalcançável exatidão das traduções, a frase retorna para a língua de origem de uma forma metamorfoseada (formando, assim, a segunda frase). Já essa segunda frase passou pelo mesmo ciclo de traduções formando por fim a terceira frase. Ou seja, a terceira frase é na verdade uma tradução da segunda frase e a segunda frase uma tradução da primeira frase. A terceira margem do rio está no rio mesmo. A palavra, o homem, o mundo. Falta aí então um termo, que completa e problematiza a operação: a máquina. Os versos acima surgiram desta equação: 1 – cérebro humano, gatilho para o encadeamento que virá. 2 – máquina, plataforma que gira o mundo. 3 – palavra, imagem dos seres humanos. 1 + 2 = 3. Em 2004 foi criado um ambicioso projeto que pretendia escanear todos os livros já escritos pelo homem e disponibilizá-los na internet, o GoogleBooks. O projeto caminhava para uma realidade grandiosa e assustadora: em teoria todas as pessoas teriam acesso a todo livro. É como a criação do mundo dentro do próprio mundo. A palavra, o mundo, as virtualidades e seus poderes de reproduzir sem nunca atingi-lo. E assim percorremos caminhos tortuosos que nos aproximam uma vez mais de Borges, não exatamente à sua Biblioteca, mas aos hrönir. No conto Tlön, Uqbar, Orbius Tertius, Borges imagina um planeta (Tlön) que supostamente foi concebido por pessoas. Entre suas diversas invenções, aparecem os hrönir: a duplicação de um objeto que sempre apresenta variações mais ou menos extravagantes. Como se dois corpos iguais não pudessem coexistir. A Biblioteca de Alexandria foi queimada antes que fosse adquirida uma espécie de cada manuscrito existente até então. Hoje, a lógica do ciborgue aponta para futurísticas células nanochipadas detentoras de toda a informação em todos os homens. Já agora, se todas as pessoas desligassem seus computadores em casa, a internet continuaria funcionando, como um oceano desabitado. Talvez estivéssemos criando nossos próximos herdeiros metaterrenos, nossos golens. Na lenda, o criador ao perceber o perigo eminente da criatura, a destrói a partir de um movimento mágico. Mas a máquinas parece se apresentar de maneira distinta. Na verdade, já muito antes do século XVIII, o mercado, as sedimentações, os meios de produção ou os dobramentos modificam as relações gerais. De todo modo, as revoluções industrial ou tecnológica são assombrações mais recentes que ajudam a presentificar um sentimento quiçá generalizado. Essas últimas mutações se expandem de maneira surpreendente e apontam para um sentimento de irreversibilidade. Cambiando entre ações humanas e aberrações velocistas, as máquinas estão presentes no dia-a-dia das cidades. Em um novo formato de se relacionar com a vida e a arte o homem entra em um esquema mais próximo do maquinal – a fusão espiritual entre o homem e a máquina. Rituais lógicos, manifestações mágicas maquínicas formatam uma nova experimentação do mundo. Segundo o Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, utilidade é “a capacidade de um bem ou serviço de satisfazer às necessidades humanas” e artificial é aquilo que foi “produzido pela mão do homem, não pela natureza”. Espontaneamente, se o novo homem é de certa maneira o homem-máquina, a invenção do útil é destinada para o que poderia ser chamado antes de artificial. Ou ainda, artificial é natural (ou ainda, a situação golêmica). Amalgamada na vida moderna de forma tão prestidigitadoramente natural, a máquina se adaptou ao homem e o homem se adaptou à máquina. De maneira histórica, a sua apresentação útil em relacionar os eventos lhe garantiu a existência prolongada e, de certa forma, imortal. Em tempos práticos, a velocidade da luz é cruel com o que está parado e a pausa pode ser facilmente encarada como inutilidade. Se o inútil é o que não colabora para o social-robótico, sua eliminação é o destino mais certo. O acúmulo de uma poeira parada pode ruir uma aparelhagem eletrônica. Em uma imaginativa cidade – não muito distante – a eminência da anulação é sugerida em qualquer aproximação do sentimento e do sentido. O que desvia para caminhos não programados está sujeito à invalidação e essa situação gera um temor generalizado à não adequação. Mas o medo já não seria a própria propulsão contrária? A máquina falha quando joga com o que é contra, já que o que é contra não joga em outros termos. Na busca da lógica assertiva e unilateral, culmina para a sua antítese: morte e vida. A isso somam-se as forças ainda irrefreáveis: o dia e a noite, a gravidade e a ascensão, o fungo, a corrosão. Por outro lado, de forma irônica a velocidade do vago pode se aproximar ainda mais de um objetivo que a própria objetividade tradicional. Num estado de lógica prática em que o rebolado é rebaixado, o homem que bamboleia seduzido pela corrosão não mira o futurístico. Seu balancê desesperançado rejeita a expectativa e sua explosão se condensa no presente. Em cada segundo de big-bangs e possibilidades, a eternidade surge da vida e morte de cada segundo. De forma paradoxal a pausa atenta para o infinito do instante. Existe um pântano em uma ilha em que as plantas são mais impacientes no nascimento que na morte. A emergência da luz sem embrião contrasta com a putrefação movimentada e pegajosa. Um jogo é tentar lembrar o início da conversa, outro é tentar lembrar o início do pensamento. Enquanto as bactérias revelam bolhas à superfície, as plantas se debruçam umas sobre as outras. Um jogo é tentar lembrar o fim da conversa, outro é tentar lembrar o fim do pensamento. A bolha, quando explode, espirra o líquido pegajoso nessas plantas. Algumas não resistem, putrefam e se amalgamam com o líquido. Outras são expurgadas a partir de uma chuva ou um vento. Outras carregam o líquido pegajoso. |
[1] No ensaio A Musa da
Impossibilidade (publicado na revista Serrote número 6), Alberto Manguel realiza aproximações da obra de Borges
à figura do Golem. Aqui, partimos dessa analogia para outros desdobramentos.
Para escrever este texto também nos inspiramos
livremente nas seguintes obras e autores: Adolfo
Bioy Casares; Alberto Manguel - A musa da
impossibilidade; François Truffaut - Farenheit
451; Gilles Deleuze e Félix Guatarri;
Jean Luc Godard – Alphaville;
Jonas Mekas; Jorge Luis Borges;
William Burroughs.
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